JOÃO SILVA , quem eu amo de verdade, escreve com o coração uma verdadeira devoção ao LAGUINHO.
João Silva
Amapaense, 63, jornalista sem formação acadêmica; começou como colunista em A Voz católica, em 1966; em 1967 foi comentarista e apresentador de programa esportivo na RDM; em 1970 transferiu-se para a Rádio Educadora onde permaneceu até quando a emissora foi fechada pela Revolução de 64; articulista, cronista, correspondente das revistas VEJA e PLACAR, diretor de jornalismo da Tv Amapá.
30-6-2010
LAGUINHO DO SAMBA E DO AMOR
João Silva
No tempo em que não havia Câmara Municipal, políticos vaidosos e mal assessorados, o macapaense mesmo ia usando a imaginação para dizer onde morava, onde trabalhava, onde se divertia, onde ficava isso, onde ficava aquilo.
Ruas, becos, animal de estimação, praças, bairros, morros, salão de festa, mangueira, baixada, esquina, bar e até baiuca, nada escapava da língua do povo que ia dando nome a cada pedacinho de Macapá, quase sempre homenageando moradores antigos ou figuras populares...Baixada da Maria Mucura, Burro do Pitaica, Beco do Abieiro, Mangueira do João Assis, Igarapé das Mulheres, Bar do Barrigudo, Bairro Alto, Morro do Sapo, só para lembrar.
Alcy Araújo falava muito no Laguinho do samba e do amor. Uma noite de boêmia tinha que começar no Berro d´Água, barzinho que ficava no canto do INSS. O poeta do cais tinha uma caída pelo bairro, achava o nome original, o povo alegre e amigo - ainda bem que Laguinho permaneceu Laguinho, mas depois que o poeta descansou chegou a ser ameaçado pelos reformistas de araque.
Falar em gente inspirada, sambista de respeito, meu amigo Carlos Peru teve a ideia, em ano de Copa do Mundo na Africa do Sul, de reunir os menestréis da Nação Negra para lembrar a decisão governamental que transferiu famílias de negros descendentes de escravos para a área que compreende hoje o bairro moreno da cidade.
As famílias moravam em casas toscas que ficavam na parte alta da margem do Rio Amazonas, numa Macapá paupérrima, cujas águas avançavam dentro da área urbana, já que não havia muro de arrimo. Janary Nunes queria o espaço para começar a construção de uma capital moderna, como sempre dizia.
Daí é que construiu o Grupo Escolar e a Praça Barão do Rio Branco, o Forum, o Posto de Puericultura, o prédio dos Correios, a residência oficial e casas em alvenaria para hospedar membros do primeiro escalão do governo, como João Telles, secretário-geral, e Uadih Charone, chefe da Guarda Territorial.
A decisão do primeiro governador do Amapá não foi tão simples assim como pode parecer. Ao descobrirem que as casas construídas por Nunes não seriam para pobres como eles, mas sim para gente graúda, os negros protestaram na caixa do marabaixo cantando Aonde Tu vais rapaz/Neste caminho sozinho/ Vou fazer minha morada lá nos campos do Laguinho!
Definitivo é que desde que essas famílias se juntaram para esculpir a face da Nação Negra onde permanecem até hoje, lá se foram sessenta e cinco anos muito bem lembrados pelo Carlos Peru, que nasceu laguinense, e mora no coração do Laguinho.
Difícil lembrar todo mundo, mas entre vivos e mortos me atreveria a dizer que o Laguinho é a cara do Sacaca, do Mestre Julião, do Lourenço Tavares, do Falconiery, do João de Paula, e da Tia Macica; lembra o suingue da sambista Marivanda, a alegria da poetisa Neca Machado, o jeito manso do compositor Francisco Lino, a fidalguia do artista plástico e poeta Manoel Bispo e a cidadania do João Anastácio, honestíssimo secretário de finanças da PMM por muitos anos, levando na ponta dos dedos o fusquinha branco comprado no Teixeirinha - para lembrar antigos moradores como os Ramos, os Del Castilo, os Pontes, os Farias e os Távora.
O Laguinho quer dizer também Crioulo Branco, João de Deus, Rosendo, Meton Jucá, Sílvio Leopoldo, Edi Prado, Euclides Moraes, Maxico, Tupinambá, Bibi, João Costa, Edvar Mota, Piturisco, Psiu, Munjoca, Chefe Humberto, Milton Correia, Biluca, Perigoso, Sabazão, Neck e Waldir; ainda poderia se chamar Piedade, a eterna musa, Fernando Canto, Grupo Pilão, Julio Pereira, Tia Lucy, Guita Preta, Venina, da Trindade, Pedro Monteiro, Ubiratan Silva, Amujacy, Darciman, Leonai Garcia, Heraldo Almeida,Vicente Cruz...Vive nos mimos do poeta Osmar Junior, na música do Ilan, na generosidade de Mãe da Luzia, nas lembranças do Paulino e do Pavão.
O Laguinho é a cruviana que aconchega os amantes nas madrugadas do Bar do Tio Duca, é o papo que rola no Banco da Amizade, a força que se renova nas “Raízes do Bolão”, no canto do Negro de Nós, do Sambarte, e brilha no talento do Nena Silva refinando sons tribais que chegaram aqui nos porões dos navios negreiros.
Raíz é raiz! Todos os anos, em noite de luar ou não, os afro-descendentes de toda parte do estado se juntam no coração do Laguinho para exaltar as tradições da nossa gente no Encontro dos Tambores, na festa da decente negritude de um povo! Claro que o lugar perdeu a inocência dos banheiros públicos, dos mercadinhos, das peladas no campinho do Lélio Silva, dos salões daquela época, mas fazer o quê?
Entre supermercados, cinema, boates, postos de gasolina, escolas, comércio, praças, prédios de apartamentos e as mazelas da cidade grande, o Laguinho resiste, continua nicho da cultura, dos amores, da boêmia; tudo é motivo de festa que não se curte sem batuque, marabaixo e gengibirra, sem louvor ao Divino e levantação do mastro, carnaval e futebol, sem reza e torcida para a Universidade, para o São José e São Benedito.
Foi assim, cantando, dançando, esperançando, se conscientizando que o povo transformou a UNA na fortaleza do Laguinho, onde cruzam as lutas do negro do Amapá contra o preconceito e a injustiça; lá a Nação Negra se fortalece, o negro liberto se vê, cresce, exige uma sociedade livre de todo tipo de escravidão, o que vale lembrar que uma negra do Amapá por muito pouco não chegou ao Senado da República.
Antes de me apaixonar pelas cores da Sociedade Esportiva e Recreativa São José, na minha juventude, havia um Laguinho encantado, um quase descampado, umas mulheres passando da sede do Boêmio e do seu eterno porteiro Bolão, além do campo do América; um Laguinho que se espreguiçava na direção das matas onde surgiram as casas do Pacoval e os bairros da Zona Norte. No sábado, a pé, pouco dinheiro no bolso, eu vinha do centro para “mariscar” uma noite de amor na festa de aparelhagem do tal de Ralle-Gally, bem na esquina da General Rondon com a Nações Unidas...
Parabéns, Laguinho negro, mas plural e democrático, altar e passarela de todos os carnavais, de todos os credos, dos pardos, dos mulatos e dos brancos que citei, gente que te admira como se negro fosse, caso de um certo “alemão” que é papa chibé, tem nome de gringo (Walker), não mora no teu chão, mas te ama de paixão!
Eu não nasci em ti como o sambista Carlos Peru, não saio na escola, não vou às domingueiras do Boêmios, mas eu te amo tanto quanto teus poetas, teus escritores, teus compositores, quanto teus moradores mais antigos e filhos mais ilustres...